O direito de ser esquecido em tempos de memórias expostas
Dividir o indivisível, fracionando o tempo em anos, meses e dias, foi uma
das grandiosas invenções da humanidade, especialmente por tornar factível a
oportunidade de “recomeçar”. Neste intento, por uma necessidade fisiológica, o
cérebro transforma as experiências outrora vivenciadas em lembranças que,
com o transcurso do tempo, vão perdendo as cores, a nitidez, e a própria
forma, agraciando o indivíduo com a possibilidade de perdoar, refazer-se e
“seguir em frente”.
No entanto, com o advento das novas tecnologias, inerentes à
sociedade contemporânea, a propagação quase instantânea de informações
em muito tem modificado este cenário, de sorte que “esquecer” se tornou uma
excepcionalidade, revelando-se, como diretriz atual, o eterno e, por
conseguinte, tão nocivo “lembrar”¹. Através da Internet, por exemplo, um fato
ocorrido em um local distante, pode tornar-se subitamente conhecido por todos,
transformando o “instantâneo” em “perpétuo”, a partir de um singelo post.
E neste contexto, convém ressaltar que os meios de comunicação
integram a sociedade de tal forma que terminam por modelar a opinião pública,
a ponto de influenciar o comportamento social, ao não apenas espelhar a
“realidade”, como também alterá-la em conteúdo e significado², especialmente
em virtude do ato criativo próprio da interpretação, realizada por um ser
humano, portanto, cultural, contextual, histórico e empírico, a materializar a
“vista de um ponto”.
Além do mais, como bem reflete Gilles Lipovetsky, muito embora a
cultura midiática tenha democratizado a informação, movimentando as
consciências até então adormecidas dos indivíduos, mostrou-se como o novo
“ópio do povo”, ao ofertar um universo de sonho, lazer, entretenimento e, por
fim, de esquecimento da realidade que os cerca³. Neste ínterim,
subliminarmente difundiu valores burgueses, servindo como instrumento de
integração dos indivíduos ao sistema burocrático e capitalista, contribuindo
para a padronização da sociedade, composta por sujeitos dotados de um
conhecimento frágil, adquirido superficialmente⁴.
E justamente com a consolidação do papel da mídia, o direito de ser
esquecido tornou-se discussão de grande relevância, representando um meio
de impedir que “fatos passados” voltem à tona, sem qualquer interesse legítimo
que o justifique, a prejudicar, drasticamente, o envolvido⁵. Como enunciou
Stefano Rodotà, o direito ao esquecimento “significa que nem todas as
pegadas que deixei na minha vida devem me seguir implacavelmente, em cada
momento da minha existência”.⁶
Assim, em um cenário marcado pelo individualismo, por relações
líquidas e opiniões rasas, replicadas sem o mínimo de criticidade, como se
“verdades absolutas” fossem, qualquer olhar direcionado ao “Outro”, sua
história, experiência e particularidade, precisa, de algum modo, ser
reverenciado.
É de bom tom esclarecer, no entanto, que o instituto em referência não
poderia ser considerado absoluto, em sua feição abstrata, exatamente por
correr o risco de ser confundido com uma censura institucionalizada, o que,
sem sombra de dúvida, caminharia na contramão do Estado Democrático de
Direito, representando um retrocesso sobremaneira significativo, especialmente
no momento delicado em que se encontra o Brasil.
Por outro lado, vislumbrado à luz do caso concreto, o direito de ser
esquecido se harmoniza com a Constituição Federal, uma vez que nem sempre
a liberdade de expressão e o direito à informação são legitimamente exercidos,
não sendo incomum a invasão da privacidade, intimidade, honra e imagem do
sujeito submetido aos holofotes midiáticos, através da publicação de notícias
que mais dialogam com o “interesse do público” do que com o “interesse
público”.
Por: Ísis Ariana Castro de Melo.
1 COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital. In:
SCHREIBER, Anderson (Coord.), Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 185.
2 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e Crime. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Coord.).
Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva (criminalista do Século). São
Paulo: Editora Método, 2001, p.356 e 358.
3 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 257 e 262.
4 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, p. 260 passim.
5 SCHEREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2013, p.
171.
6 RODATÁ, Stefano apud SCHEREIBER, Anderson. Ibidem, p. 170.