A diversidade “outramente” e a tributação da maquiagem.
Muito embora não haja maior lembrança de algo tão comum, sem sombra de
dúvida, nós somos “o Outro” para os outros, e isso diz bastante em um tempo, no
mínimo estranho, onde tem insurgido, com tanta frequência e sem cerimônia, o
denominado “cancelamento” da pessoa humana. É óbvio que tal preocupação
remete qualquer intérprete do Direito a ficar perplexo com o aprofundamento de uma
crise que só vem se acentuando: a crise da democracia constitucional. Percebe-se,
nitidamente, uma certa ruptura no complexo normativo, a partir de uma constante
sempre esperada – mas agora, crescente –, a divergência entre a normatividade e a
efetividade.
Quando se fala em alteridade, – que é a categoria do “Outro”, significante
tão bem situado pela filosofia levinasiana –, em plano jurídico, revela-se de imediato
o sagrado direito à diversidade, o Direito de ser o Outro, outramente, sem qualquer
amarra ontológica à mesmidade-do-Eu, que intenta captá-lo e tematizá-lo. Esse
direito, afinado com a fenomenologia da pluralidade, constitucionalmente encontra
embasamento no princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da
República Federativa do Brasil (inc. III, do art. 1º, da CF/88), vindo a irradiar um
plexo hermenêutico no sentido de que, por trás das diferenças, se encontra um ser
humano com a sua historicidade, existência, ambiguidades, angústias, sonhos,
desejos, fome, sede e vontade de realização.
Decerto, trata-se de uma vulnerabilidade que se afigura como um traço
comum ao ente humano, invariável portanto, a justificar a promoção “do bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação” (inc. IV, do art. 3º, da CF/88). A diversidade, assim, encontra em
plano constitucional, um referencial axiológico a ser garantido, deontologicamente, a
partir da igualdade formal estabelecida no conjunto normativo do art. 5º e seus
incisos, o qual, logo em seu início, já enuncia uma regra isonômica, no sentido de
que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da
Constituição.
Materializar essa igualdade significa considerar, também, a medida das
desigualdades de cada um. E não poderia ser diferente… O inciso I, do art. 3º, da
Constituição Federal, também dispõe como sendo um dos objetivos fundamentais da
República, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, algo impossível,
mantendo-se, programaticamente, a exclusão e a discriminação.
E neste aspecto, diminuindo-se o enfoque das lentes ora manejadas, não é
demais trazer à tona a igualdade em sua feição tributária, que proíbe tratamento
diverso a “contribuintes que se encontrem em situação equivalente” (inc. II, do art.
150 da CF/88), exatamente, porque, no mínimo, a multitextualidade normativa traz
em si uma interdiscursividade que coloca o hermenêutica a questionar, na melhor
das hipóteses, de onde fala o legislador e/ou se sua construção legiferante avulta o
jurídico ou o não-jurídico, justamente por conta da relação de afetamento entre os
seus enunciados infra-constitucionais e a própria Constituição.
Decerto, a facticidade conflituosa encontradiça pelo uso imoderado do
discurso a partir de uma dada vontade política, terá de ser remanejada para um
outro âmbito, o decisório, o qual é informado pela mesma principiologia
constitucional aqui, sinteticamente, situada.
Vide o que ocorre ao IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), quando se
tem em voga, por exemplo, produtos de maquiagem, cuja alíquota é de 22% ¹ ,
enquanto outros cosméticos, como é o caso do shampoo e do condicionador,
utilizados, indistinta e proporcionalmente, por homens e mulheres, são submetidos a
7% ² , considerando-se a mesma regra-matriz de incidência. Perceba-se que, muito
embora alguns homens se maquiem, isso ainda não deixa de ser uma
particularidade sobrevivente nos recônditos da excepcionalidade.
Então, tem-se um produto, que pela intensidade da incidência tributária, a
violar o princípio da seletividade, parece ser tratado como se fosse algo voluptuário,
desnecessário, mas que se encontra na ordem do dia do gênero feminino, como um
item indelével. Já no tocante ao shampoo e ao condicionador, também de uso
masculino, e tão usual quanto, o tratamento é outro.
A alteridade levinasiana talvez nos remeta a fazer o seguinte
questionamento: será que os produtos de maquiagem, aos olhos das mulheres, são
considerados supérfluos, ou sua utilidade se esgota, exclusivamente, na perspectiva
de um Legislativo, que no processo político sofre pequena representação do gênero
feminino? E mais do que isso, estaria esse padrão tributário dando concretude aos
primados constitucionais acima ventilados, atinentes à dignidade da pessoa
humana, à igualdade, e ao bem de todos? Enfim, não se estaria, aqui, diante de um
modelo de tributação que acentua a discriminação de gênero?
Por: Maurício Ribeiro de Castro e Ísis Ariana Castro de Melo.
1 Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI), aprovada pelo Decreto nº 8.950/2016,
fl. 149.
2 Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI), aprovada pelo Decreto nº 8.950/2016,
fl. 149.